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UFRGS 2023 - DISSERTAÇÃO - APAGAMENTO DAS MULHERES
UFRGS
O apagamento das mulheres na história e o direito à memória
UFRGS - 2023 - ID: KUR
Considere, abaixo, o texto “O apagamento das
mulheres na história e o direito à memória”, de autoria da Juíza do Trabalho
Daniela Valle R. Muller, escrito para o blog Sororidade em Pauta, e publicado
na Revista Carta Capital, em 12.04.2019:
Às vezes acontece bem na nossa frente, de supetão.
A verdade é que passamos a enxergar o que já acontece faz tempo, afinal, o
apagamento da mulher na história e/ou a diminuição do seu papel eram tidos como
“naturais” e só passaram a ser percebidos como problema há pouco tempo. Uma situação
da qual nos damos conta aos poucos, percebendo que nos relatos oficiais nós, as
mulheres, sumimos e, quando mencionadas, aparecemos apenas em papéis
coadjuvantes – amantes, esposas, mães, enfim, como um detalhe pitoresco e de
menor relevância da narrativa. Discutimos e pensamos nisso, normalmente, de
forma abstrata, mas a vida não acontece apenas no plano das ideias, a realidade
é caprichosa e um dia ela teima de acontecer assim, na nossa frente, e de um
modo semiexplícito para não deixar dúvida do que se passa. Mais do que
entender, nesse momento sentimos o que é a memória negada e distorcida em
relação às mulheres, em especial quanto a sua atuação na esfera pública. Comigo
esse flagrante aconteceu durante uma aula sobre Lênin e a Revolução Russa. O
professor relatava detalhadamente os acontecimentos entre 1914 e 1920 e a certa
altura mencionou uma importante reunião de governo, realizada pouco depois da
vitória revolucionária. Nesse momento, uma aluna interpelou sobre a
participação de uma determinada mulher na referida reunião. O professor
confirmou, mas disse que essa participação, essa mulher, o fato em si, nada daquilo
era significativo e seguiu a aula sem dar detalhes sobre nossa revolucionária,
que permaneceu nas sombras da história. Nesse exato momento, aquela mulher foi
simplesmente apagada da narrativa histórica, e isso aconteceu através de um
gesto singelo, cotidiano: avaliação como irrelevante dessa presença feminina.
É um poder grande esse de selecionar o que é
importante e o que não é digno de registro e nota, o que pode ser apagado,
esquecido. Até hoje não sei quem era a pioneira, seu nome não foi anotado no
quadro, nem mesmo foi ditado claramente, apenas mencionado en passant pela
colega de turma. E isso em relação a um movimento protagonizado por mulheres
que, em 23 de fevereiro de 1917 (dia 8 de março no nosso calendário), iniciaram
um protesto e uma greve que foram o estopim da Revolução Russa de outubro de
1917. Mesmo assim, pouco ou nada sabemos acerca de revolucionárias como Inês
Armand, Natália Sedova, Rosalia Zemlyachka, Alexandra Kollontai e Nadêjda Krúpskaia.
Esse é apenas um de infinitos casos. Mesmo em relação à Revolução Francesa,
detalhada, descrita e narrada ad nauseam nos últimos duzentos anos, raramente
se menciona a existência de Olympe de Gouges que, em 1791, escreveu a
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, além de peças teatrais que
explicavam os princípios da Revolução Francesa à enorme massa de analfabetos;
nem Sophie de Condorcet e tantas outras que já questionavam a desigualdade
opressora entre homens e mulheres. A história do Brasil não é exceção. Aqui,
tantas outras mulheres são igualmente esquecidas, classificadas como
desimportantes. Desse jeito ficamos sem acesso a uma parte importante da nossa
memória, das origens que nos constituíram como sociedade, porque pouco ou nada
conhecemos sobre figuras como Dandara dos Palmares, Luísa Mahin, Mariana
Crioula, Myrthes Campos, Alzira Soriano, Nísia da Silveira. Ou então são
desqualificadas como figuras tristes, loucas ou más. Essa desqualificação,
aliás, é uma constante, basta lembrar a vereadora Marielle Franco que, poucas
horas após seu brutal assassinato, sofre uma nova tentativa de homicídio, dessa
vez, simbólico, moral. Para que o crime seja perfeito sua morte tem que ser
completa, para impedir a continuidade da sua luta, das suas ideias, da sua
representatividade, enfim, para que ela se torne uma pessoa que ninguém conhece
e, portanto, sem importância, senha para desaparecer dos registros históricos
oficiais. E muito antes dela aprendemos: D. Carlota Joaquina era louca, D.
Leopoldina, melancólica e mal amada, Domitila de Castro, apenas uma mundana e
por aí vai. Será mesmo? Mulheres que participaram tão ativamente de
acontecimentos políticos tão relevantes na história do Brasil? Um país que
nasceu de um decreto assinado por uma mulher, onde a escravidão foi extinta por
lei assinada também por uma mulher, a primeira escola pública gratuita foi
instituída por uma mulher, a primeira greve geral foi iniciada por mulheres,
operárias da indústria têxtil de São Paulo, não tem como contar sua história
por inteiro excluindo as mulheres da narrativa e dos registros oficiais. Consequência
dessa falta de registro é a impressão, fortemente instalada no senso comum, de
que a participação das mulheres na história, na sociedade e na política é nula
ou bastante secundária e reforça a premissa patriarcal de que a mulher deve se
restringir ao ambiente e às questões domésticas, civis, particulares. Entretanto, a memória das conquistas, das
realizações e também das injustiças sofridas por nossas ancestrais que foram
massacradas e/ou silenciadas, que não tiveram oportunidade de ter seu ponto de
vista considerado, é a chave para interromper essa lógica, sendo um componente
essencial para compreender o presente e confrontar uma visão de “natureza”
quanto ao protagonismo dos homens na construção do processo histórico. Tal
quadro desafia a compreensão da realidade para além dos feitos narrados pelos
vencedores, registrados nos livros e documentos oficiais, e recomenda uma
aproximação do passado que fica oculto, de expedientes que a história oficial
deu por arquivados, mas estão guardados em fragmentos como roupas, canções,
corpos, depoimentos, ruínas, prédios. Olhar com atenção esses fragmentos permite
“escovar a história a contrapelo”, conhecer e cultivar a memória daquelas que
lutaram e trazê-las a público para dar nova vida às mulheres que ficaram
escondidas nas sombras da história. Porque a memória é assim, um jogo de luz e
sombras, seletiva: enquanto traz à luz alguns fatos e aspectos, obscurece
tantos outros, que se apagam, caem no esquecimento. Resgatar a memória de luta
das mulheres é uma necessidade para enfrentar, hoje, o retrocesso representado
pela opressão machista e patriarcal; portanto, conhecer, registrar e divulgar
os feitos das mulheres, suas lutas, suas ideias, suas estratégias de
solidariedade e enfrentamento é dar nova vida a essas guerreiras, evitando que
fiquem nos registros históricos como derrotadas e insignificantes.
Disponível
em:
https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-pauta/o-apagamento-das-mulheres-na-historia-e-o-direito-a-memoria/
Você, com certeza, percebeu: o texto é contundente!
Ele expõe com clareza a opinião da Juíza a respeito do assunto. Para
argumentar, a autora faz uso de conhecimento histórico, de experiências pessoais
e de exemplos conhecidos, ou não, por nós. Realmente, o tema “O apagamento
das mulheres na história e o direito à memória” merece discussão ampla e
aprofundada.
A partir da leitura do texto, considere a seguinte
situação: você faz parte de um grupo universitário que estuda e debate assuntos
da contemporaneidade, atividade muito comum dentro das universidades.
Normalmente, esses grupos são coordenados por um ou dois professores e contam com
a participação de alunos de iniciação científica, alunos de diferentes
semestres da faculdade, outros professores etc. Ou seja, são, por natureza,
bastante heterogêneos. O fato é que o professor coordenador do seu grupo leu o
texto da Juíza durante uma reunião e, como era de esperar, o tema suscitou
forte debate. Alguns colegas concordaram completamente com a autora; outros,
dela discordaram veementemente. Enfim, instaurou-se uma forte polêmica! Tendo
em vista essa situação, o professor coordenador solicitou a membros do grupo a
redação de textos dissertativos que apresentem claramente um posicionamento
acerca das opiniões lançadas pela Juíza. Esses textos representarão as ideias
daqueles que concordaram ou daqueles que discordaram da autora.
Você foi um dos escolhidos pelo professor nesta
importante tarefa: escrever um dos textos! Observe que você será porta-voz de
uma coletividade: seu texto, além de apresentar um posicionamento qualificado
sobre as ideias da Juíza, deverá representar a opinião de seus colegas de
grupo. Enfim, você deverá escrever uma dissertação que, ao ser lida no grupo de
estudos ao qual você pertence, apresentará seu ponto de vista sobre o texto da
Juíza e representará a opinião daqueles com os quais você se identificou
durante o debate.
A versão final do seu texto deve:
1.
conter um título na linha destinada a esse
fim;
2. ser escrita, na folha definitiva, com caneta e em
letra legível, de tamanho regular.